A ILHA GRANDE:
Este texto começou a ser pensado há um ano e meio, quando realizei uma viagem à Ilha Grande. Naquela oportunidade, visitei os escombros do antigo presídio de Dois Rios, que me deixaram impressionado. Algum tempo depois, retornei ao mesmo local e conheci mais profundamente todo o semi-implodido complexo penitenciário, indo também à única galeria que resta do antigo presídio do Lazareto (próximo ao Abraão).
Foi neste momento que decidi escrever um texto sobre este impressionante local. A antiga colônia penal, a vila abandonada, a estrada penosa. Quem tem a oportunidade, deve conhecer estes locais. Vê-los ao vivo será sempre mais enriquecedor do que qualquer descrição.
Procurei material sobre os presídios e sobre a Ilha nas mais diversas bibliotecas de São Paulo e na internet. E qual não foi meu choque ao descobrir que não há publicação (ao menos em São Paulo) a respeito do presídio?
Por isso, parte deste estudo está baseado nas poucas e contraditórias informações que recolhi na internet. Para a compreensão de como se deram as relações naquele local, procurei por relatos de ex-detentos. Quatro foram localizados: o clássico Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, Ilha Grande (do jornal de um preso de guerra), de Orígenes Lessa (preso durante a Revolução Constitucionalista de 1932),Exílio na Ilha Grande, de André Torrer (um preso comum, “promovido” a preso político), e poucas páginas deVida de um revolucionário: memórias, de Agildo Barata.
Este texto é, portanto, fundamentado no relato daqueles que estiveram presos nos dois presídios da Ilha Grande. Não é estranho que todos os relatos foram escritos por presos políticos durante os períodos de ditadura no Brasil: a Ilha Grande tornou-se a masmorra dos ditadores brasileiros.
Vigiar e Punir
É impossível tentar compreender o que se passou na Ilha Grande, como que ela foi transformada em masmorra ditatorial, sem dialogarmos com o clássico livro Vigiar e Punir: história da violência nas prisões, de Michel Foucault.
Em sua obra, Foucault traça a história do castigo e das prisões a partir de quatro divisões: Suplício,Punição, Disciplina, e Prisão.
Se pensarmos na prisão como a conhecemos hoje, ela é a principal forma de punição empregada pelo Judiciário, e isto se dá porque com ela há a privação do principal ideal burguês: a liberdade. Com o isolamento, os trabalhos forçados, e a regeneração, busca-se transformar o indivíduo. “Em suma, o encarceramento penal, desde o início do século XIX, recobriu ao mesmo tempo a privação de liberdade e a transformação técnica dos indivíduos”[1] . No caso das prisões políticas, a meta era mais a privação da liberdade do que a transformação propriamente dita. E é por isso que o caso da Ilha Grande é analisado neste texto como o de uma masmorra ditatorial – apesar de lá também terem sido presos aqueles considerados como “presos comuns”.
Tanto estes “presos comuns” quanto os “presos políticos” encontravam-se na Ilha Grande não exatamente devido diretamente aos danos que provocaram: um roubo, mesmo um assassinato, ou uma manifestação, são muito pequenos dentro da escala de toda a sociedade. Porém, o enclausuramento era visto como necessário porque estes maus exemplos deveriam ser coibidos. Tanto a proliferação dos “crimes comuns”, quanto a liberdade aos “agitadores políticos” poderiam vir a incitar os outros a seguirem este exemplo. Assim, a punição não atinge o crime em si, mas suas conseqüências para a sociedade.
A punição, portanto, está vinculada aos possíveis danos à ordem social que o crime acarreta, e não aos danos materiais propriamente ocorridos. Desta forma, a punição e o sistema carcerário entraram de tal maneira no imaginário social que passou a ser considerado legítimo aquele que pune, deixando de ser escandaloso o castigo, fazendo com que ambos caminhem juntos e se fundam nos presídios, onde a punição “legal” vem acompanhada dos castigos “extralegais”.
No relato de Graciliano Ramos, encontramos um exemplo claro desta internalização da punição e do castigo. Comentando sobre um castigo conhecido como “as vigas”, diz: “Era um castigo medonho, pior que a cela, e apenas se infligia a homens robustos e perigosos. Estavam separados de nós. Às vezes, pela manhã, durante o curto banho de sol, víamos essas criaturas em fila, conduzindo troncos pesados. Vagarosos, passavam a pequena distância, a vacilar, trôpegos, vergando ao peso da carga. As pontas dos madeiros apoiavam-se nas cabeças, nos ombros, e os infelizes arrastavam-se, dois a dois, jungidos pela horrível canga. Se um fraquejava, tombava, o companheiro via-se coagido a serviço duplo, no cocuruto uma rodilha, a trave em cima, equilibrando-se mal, as extremidades a subir, a descer. Aquilo formava uma gangorra sinistra, o espigão em marcha ronceira, titubeante. Avanços, recuos, tombos, quase impossível a geringonça manter-se em posição horizontal. Se se desconchavava, o sujeito era obrigado a arrasta-la. Polícias, com sabres desembainhados e açoites, não concediam trégua no duro esforço” [2].
A prisão, como conhecida hoje em dia, já mudou bastante desde a época de Graciliano Ramos ou mesmo desde a ditadura militar. Esta instituição punitiva, originada na Idade Moderna como Masmorra Real, sofreu inúmeras transformações, planos de reformas e mudanças que mantinham sua base: a punição. Para Foucault, “O mais antigo desses modelos, o que passa por ter, de perto ou de longe, inspirado todos os outros, é o Rasphuis de Amsterdam, aberto em 1596. Destinava-se em princípio a mendigos ou a jovens malfeitores. Seu funcionamento obedecia a três grandes princípios: a duração das penas podia, pelo menos dentro de certos limites, ser determinada pela própria administração, de acordo com o comportamento do prisioneiro. O trabalho era obrigatório, feito em comum; e pelo trabalho feito os prisioneiros recebiam um salário. Enfim um horário estrito, um sistema de proibições e de obrigações, uma vigilância contínua, exortações, leituras espirituais, todo um jogo para ‘atrair o bem’ e ‘desviar do mal’, enquadrava os detentos no dia-a-dia” [3].
A este grande modelo, juntou-se aquele que ficou conhecido como o “panóptico de Bentham”: trata-se do princípio da vigilância. O edifício da instituição – este modelo poderia ser aplicado tanto em prisões quanto em hospitais, escolas, quartéis... – deveria ter uma forma circular e em seu centro seria instalada uma torre de vigilância. A partir dela, o carcereiro poderia observar todas as celas – estas, seriam vazadas em ambas as extremidades para permitir a passagem da luz – sem que os observados o vissem.
A torre teria um sistema de proteção nas suas janelas, de forma que os presos não poderiam jamais saber se estavam ou não sendo vigiados. Ou seja, o que importava não era necessariamente estar sendo vigiado, mas sim saber que era possível estar sendo: “Por isso Bentham colocou o princípio de que o poder deveria ser visível e inverificável. Visível: sem cessar o detento terá diante dos olhos a alta silhueta da torre central de onde é espionado. Inverificável: o detento nunca deve saber se está sendo observado; mas deve ter certeza de que sempre pode sê-lo” [4]. | Interior da penitenciária de Stateville (EUA), séc. XX, in FOUCAULT, M. "Vigiar e Punir" |
Se somente atualmente, com as instalações tecnológicas de vigilância, as prisões estão se aproximando do modelo de total vigilância do preso, a violência ao corpo deste sempre esteve presente, caminhando junto da punição e do castigo.
As prisões, com sua privação da liberdade, acompanhadas dos trabalhos forçados, tiveram e tem sempre a complementariedade de punir o corpo do condenado com diminuição na ração alimentar, privação sexual, torturas e castigos físicos.
Recorrendo mais uma vez a Graciliano Ramos, podemos acompanhar como esta relação se dava no dia-a-dia: “Os homens do trabalho foram chegando, sujos de pó vermelho, suarentos. Cerca de meio-dia saímos do galpão, outra vez nos dirigimos ao refeitório. Vi-me sentado entre as figuras vagamente percebidas pela manhã (...). Colheres e pratos de folhas tiniram, chocando-se na distribuição, e logo veio a comida: feijão negro, farinha, um pedaço de carne. Uma insignificância, ninguém podia alimentar-se com tão pouco. Mas o que me assombrava era o aspecto da bóia. Horrorizei-me, pensando em vômito, em lata de lixo. Afirmando a mim mesmo ser impossível um estômago suportar aquilo, observava o contrário, numerosas pessoas devorando sôfregas, insensíveis à porcaria e ao cheiro teimoso de podridão. O olfato, o paladar e a vista acomodavam-se às circunstâncias. E havia um clamor surdo. Evidentemente não se abalançariam a pedir qualquer coisa. Mas achavam-se esfomeados, novecentos indivíduos esfomeados a procurar migalhas nos pratos vazios. Gestos aflitos, desespero nos rostos, um sussurro a aumentar, queixa longa. Não os inquietava a qualidade: atormentava-os a insuficiência da refeição torpe. Em redor de mim tudo se consumira, e obstinava-me a chupar o cigarro, olhando a infame ração. Na farinha escura havia excremento de rato” [5].
Para Foucault, “o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o suplicam sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais”. Ou seja, é impossível desvincular os castigos corporais do sistema punição-castigo: este exige uma mudança no corpo, que este se torne dócil.
A disciplinarização da sociedade e conseqüentemente das prisões está intimamente relacionada à punição. Regular os corpos, torná-los dóceis, é a meta que todos os sistemas disciplinares procuram, desde a escola até o trabalho. Aqueles que fogem a esta regra são punidos e devem ser disciplinarizados à força nas prisões, aumentando assim sua utilidade econômica e ao mesmo tempo, diminuindo sua força política contestatória. Algumas formas de obtenção destes resultados são encontradas na Ilha Grande e nas demais prisões: a vigilância hierárquica, o registro contínuo e as classificações.
A prisão é um aparelho disciplinar em sua mais ampla concepção: “deve tomar a seu cargo todos os aspectos do indivíduo, seu treinamento físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral, suas disposições; a prisão, muito mais que a escola, a oficina ou o exército, que implicam sempre em uma certa especialização, é ‘onidisciplinar’. Além disso a prisão é sem exterior nem lacuna; não se interrompe, a não ser depois de terminada totalmente sua tarefa; sua ação sobre o indivíduo deve ser ininterrupta: disciplina incessante. Enfim, ela dá um poder quase total sobre os detentos; tem seus mecanismos internos de repressão e de castigo: disciplina despótica” [6].
Na Ilha Grande, foram instaladas duas prisões: a “antiga”, também conhecida como “Lazareto” ou “do Abraão” era uma penitenciária comum, onde os presos permaneciam em suas celas durante todo o tempo. Já a de Dois Rios, a “nova”, era uma colônia penal. Ou seja, a princípio ela era destinada a modificar os presos a partir do trabalho.
Esta metodologia de transformação do indivíduo é recorrente nas mais diversas épocas e locais. Procura-se “reconstituir” no preso, dito como preguiçoso, o gosto pelo trabalho: ensiná-lo um ofício “útil”. Dentro deste processo, procura-se inserir no carcerário os hábitos a que ele teoricamente sempre foi contrário (porque, senão, não estaria nesta condição), ou seja, os hábitos para o trabalho, regras e ordens sociais, e o respeito à autoridade. Quando tudo isto é tido como assimilado pelo preso, ou seja, passa a funcionar automaticamente, ele é tido como “recuperado”.
O trabalho nas colônias penais é, portanto, destinado não à obtenção do lucro, mas sim a inserir o indivíduo nas relações de poder da sociedade burguesa, ajustando-o à submissão e ao aparelho de produção: “Não é como atividade de produção que ele é intrinsecamente útil, mas pelos efeitos que toma na mecânica humana. É um princípio de ordem e de regularidade; pelas exigências que lhe são próprias, veicula, de maneira insensível, as formas de um poder rigoroso; sujeita os corpos a movimentos regulares, exclui a agitação e a distração, impõem uma hierarquia e uma vigilância que serão ainda mais bem aceitas, e penetrarão ainda mais profundamente no comportamento dos condenados, por fazerem parte de sua lógica: com o trabalho, ‘a regra é introduzida numa prisão, ela reina sem esforço, sem emprego de nenhum meio repressivo e violento’ ” [7].
Mapa da Ilha Grande. A Nordeste, a área do Abraão. Ao Sul, a área entre Parnaióca e Santo Antonio (2 Rios)
A instalação do Lazareto e a transformação da Ilha em lugar maldito
“Estamos absolutamente separados da vida. A Ilha Grande é muito grande,
como dizia um gaiato no tempo do império, fazendo um soneto “à la manière”
do Imperador. A Ilha não tem fim. As embarcações pequenas ou grandes
estão todas sob o controle imediato e rigoroso do tenente Canepa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário